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01/11/2023

Eutanásia

  — Poderia, caso ainda se recorde, nos dizer como e quando isto tudo começou? — dirigiu-se o juiz ao réu e ao mesmo tempo defensor, já que ele havia decidido fazer sua própria defesa.


— Certamente, Meritíssimo! Ainda está viva esta lembrança em minhas memórias. E, caso algum ilustre integrante do júri seja jovem demais para se recordar desta época, sei que encontrará facilmente referências a isto nos registros da Nuvem de Dados Planetária. Eu fui contemporâneo da grande onda de bio-hacking de meados do século XXI, e como todo mundo eu também queria explorar meus limites biológicos, algo cada vez mais corriqueiro e barato com a biotecnologia e nanotecnologia emergentes.


— Intervenções cirúrgicas desnecessárias e levianas, é o que o acusado quer dizer. — se intrometeu o promotor.


— Protesto!! Meu colega faz suposições sobre fatos desconhecidos.


— Protesto aceito! Por favor, prossiga!


O réu-defensor olha para o vazio, tentando retomar a linha de raciocínio interrompida. Então continua:


— A princípio não havia nenhum tipo de intervenção cirúrgica, como sugere meu colega. Quem na época poderia resistir, por exemplo, à tentação de reativar variantes inativas da rodopsina no código genético dos bastonetes, tornando a retina capaz de reagir à radiação infravermelha? Por que não estender os limites de nossas visões, tornar-nos capazes de visão noturna, bastando para isso uma inócua e não invasiva terapia genética?


— Não existia uma restrição na época quanto à modificação dos próprios genes? — insistia irredutível o promotor. — À depredação irresponsável do patrimônio genético humano?


— Veja bem, Meritíssimo: eu… digo, meu cliente não estava alterando seus genes! Os genes responsáveis por esta variação da proteína rodopsina capaz de interagir com o infravermelho sempre estiveram presentes no DNA humano. Só estava inativa, pois em nossa espécie especificamente ela não representava nenhuma vantagem evolutiva. Simplesmente foi reativado este trecho de meu DNA. Girei uma chave de liga-desliga, sem alterar a programação. Nenhum DNA externo adicionado para proporcionar tal característica, apenas ativação de um trecho que já existia, mas que normalmente era inativo.


Houve uma comoção do júri, em sinal de aprovação. Claramente explicado daquela forma, o argumento fazia todo o sentido!


— Mas isto abriu caminho para os apêndices biomecânicos, não é verdade?


A defesa não se irritou com esta nova interrupção da promotoria, que já era esperada. Respondeu com tranquilidade.


— Entre o final do século XXI e início do século XXII o corpo humano deixou de ser encarado como um templo inviolável. Era visto mais como um apêndice orgânico de nossas mentes, que podia tranquilamente ser aperfeiçoado ou mesmo corrigido tecnologicamente, caso isto pudesse melhorar a qualidade de vida de seu possuidor. Este era o consenso da época, e acredito que um ato realizado em concordância com um conceito geral da época em que aconteceu seja totalmente válido, não é mesmo?


Aguardou algum tempo, tentando perceber a reação geral dos que estavam ouvindo. Continuou, certo de todos terem compreendido a ideia original.


— Percebam que nesta época meu cliente já era praticamente centenário, seus ossos e músculos já não lhe respondiam a contento e isto me fazia sofrer. Digo, fazia sofrer meu cliente. As intervenções cirúrgicas já não eram mais, como disse antes meu nobre colega, nem levianas nem desnecessárias. Estava dentro do direito de meu cliente se utilizar da tecnologia da época para corrigir as falhas do corpo, decorrentes do tempo de uso, e aperfeiçoá-lo também se possível!


— A amputação dos membros era desnecessária! A terapia genética, que inclusive já foi citada pelo colega há pouco, poderia trazer de volta o tônus muscular e recalcificar os ossos! Era possível recuperá-los preservando suas naturezas orgânicas, sem precisar substituir partes de seu corpo natural por frias próteses mecânicas.


— Meu nobre colega desconhece o sofrimento que isto causaria! Dores indescritíveis durante a apoptose das células musculares velhas, no longo processo de substituição por células novas…


— Por favor, queira utilizar termos compreensíveis para um público leigo.


O advogado de defesa rápido tentou corrigir seu lapso:


— APOPTOSE: morte programada da célula, normalmente um recurso natural ativado para a eliminação de células defeituosas, mas que podemos ativar artificialmente para eliminar células já bastante desgastadas pelo tempo.


— Agradecemos o esclarecimento! Queira prosseguir.


— Continuando... Era bastante doloroso o longo processo de reconexão das terminações nervosas com estas células novas, a perda de sensibilidade. E para quê? As células “novas” já nasciam velhas, pois a restauração dos telômeros na clonagem celular ainda não era dominada totalmente naquela época.


— Linguagem leiga, por favor! — intervém novamente o juiz.


— Perdão: TELÔMEROS são terminações cromossômicas de sequências repetitivas de nucleotídeos. Não possuem expressividade genética, pois não codificam proteínas, mas protege, durante a divisão celular, as partes ativas e expressivas. Porém se deterioram um pouco a cada divisão, e quando finalmente se desgastam e chegam aos trechos ativos do DNA, começa o envelhecimento, e o inicio da morte natural das células.


— Eu, e acredito que a maioria no júri, agradecemos o esclarecimento!


— Fico feliz em deixar tudo o mais claro possível, Meritíssimo. Continuando, era um processo difícil, doloroso, e que estava condenado a uma nova deterioração bem rápida, pois os telômeros das células clonadas tinham mesmo comprimento e, portanto, mesma expectativa de vida das células velhas! Por que iria eu… digo, meu cliente, se sujeitar a tal tratamento de troca de células se substituir os quatro membros por próteses biomecânicas duráveis era mais simples e garantido?


— Mas foi exatamente aí que começaram as intervenções diretas no sistema nervoso de seu cliente, não é mesmo? — o promotor prosseguia em seu papel de contraposição. — Na estimulação artificial dos sentidos e interceptação dos comandos de ação, friamente reproduzidas em circuitos eletrônico. Algoritmos de máquina interferindo na vontade humana, o início da deterioração da alma humana, invadida sem poder reagir a invasores cibernéticos que…


— Protesto, Meritíssimo!! Meu ilustre colega está usando termos não científicos, como “alma”, e claramente seu discurso faz transparecer certa robofobia inaceitável nos dias de hoje!


Metade do júri, composto de robôs humanoides puros sem origem em matrizes humanas, estava mesmo claramente incomodada com o rumo que a promotoria tomava!


— Aceito! Caro promotor, tente pesar melhor suas palavras daqui em diante.


— Me desculpe, Meritíssimo! Foi o calor do momento…


— A defesa agora tem a palavra.


Ele passou o dorso da mão de sua prótese superior direita na testa, que era uma placa de titânio recoberta por pele sintética quase indistinguível de pele real. Ato desnecessário, pois fazia décadas ele não mais transpirava. Mas é difícil abandonar velhos hábitos reflexos, copiados da massa cinzenta original para circuitos eletrônicos auxiliares. Consultou registros armazenados na forma de estados quânticos em seus módulos de memória, e prosseguiu:


— A conexão entre as próteses e o sistema nervoso original era indispensável. Entendam, era a única forma de capturar das peles artificiais das próteses sensações semelhantes às originais, e enviar a elas comandos suaves, indistinguíveis daqueles que enviava antes a meus braços e pernas orgânicos! Só a conexão direta entre neurônios e transdutores cibernéticos permitiria isto.


— E a substituição completa do aparelho digestivo?


— A troca completa de um sistema ineficiente de extração de energia de matéria orgânica digerida por pilhas de plutônio capazes de praticamente fornecer energia eterna a um sistema orgânico? Por volta de 2130, com a crise energética que precedeu o domínio da fusão nuclear controlada, a decisão era inteiramente lógica!


— Trocou logo em seguida coração e pulmões por um sistema equivalente artificial.


— Sim, sempre visando à eficiência!


— Meu colega admite então que, em fins do século XXII, apenas 10% de seu corpo era orgânico, enquanto todos os 90% restantes eram biomecânicos?


— Sim, admito! A cabeça original e a parte central da medula espinhal ainda eram orgânicas, mas todo o restante do meu corpo… quer dizer, do corpo de meu cliente, eram equivalentes robóticos imitando muito bem, ou até melhor, as partes originais.


O promotor sacudia a cabeça em sinal de desaprovação, inconsolável.


— Não entendo como é possível ouvir tudo isto sem perceber o crime terrível sendo paulatinamente cometido ao longo dos anos!


— Por favor, desenvolva sua ideia! A palavra agora é sua!


O promotor não podia perder aquela oportunidade valiosa!!! Ponderou bastante antes de começar sua tese.


— Vimos até o momento, e esta é a ideia que o nosso colega está tentando nos mostrar, que toda esta substituição do orgânico pelo cibernético é resultado de decisões voluntárias da vítima!  Imagino que o passo seguinte foi a substituição da própria massa encefálica, não é mesmo?


— Sim! — a defesa aproveitou a deixa. — Aos poucos, lobos cerebrais com funções específicas sendo substituídos por circuitos cibernéticos, convivendo harmonicamente com os circuitos neurais originais até serem capazes de reproduzir totalmente seus comportamentos, quando então os originais já deficientes devido à idade avançada podiam ser totalmente descartados.


— O cerebelo foi o primeiro órgão do sistema nervoso totalmente substituído?


— Sim! Os circuitos eletro-foto-quânticos desempenhavam seu papel com muito mais eficiência! Todos os controles motores do órgão original podiam ser dispensado.


— Meu colega falta com a verdade! Órgãos sensoriais importantes já haviam sido substituídos!


A defesa logo percebeu a armadilha, e tentou esclarecer rápido:


— Verdade! Na cabeça orgânica original, meus olhos, ouvidos e olfato já não eram mais os naturais.


— E quanto ao paladar? Não o substituiu por sensores cibernéticos equivalentes?


— Veja bem, meu caro: não mais me alimentava, pois toda a energia que precisava era fornecida por micro reatores de plutônio. Não precisava mais me alimentar, portanto o sentido do paladar me era inútil.


— Inútil para você ou para seu cliente?


Aquilo já incomoda o defensor-réu de forma indescritível, e ele explodiu:


— Eu e meu cliente somos a mesma pessoa!!! Eu estou fazendo minha própria defesa!!


— Não é isto que vejo, meu caro!


— Se explique! — interviu o juiz.


— Meu colega tenta defender a tese de que ele mesmo, humano, aos poucos, ao longo de mais de dois séculos, foi substituindo partes de seu corpo orgânico original por equivalentes cibernéticos. Por vontade própria, até chegar ao ponto de trocar partes do próprio cérebro! Inicialmente por módulos eletrônicos, e depois por computadores quânticos cuja função seria, inicialmente, conviver com partes importantes do cérebro original, aprender a imitá-las e, enfim, se tornarem independentes e substitui-las, descartar o original.


— Eu SOU idêntico ao original!!! Somos indistinguíveis! Tenho suas lembranças, sua personalidade, suas convicções… eu continuo sendo eu, independente do tipo de substrato no qual minha mente processa suas ideias.


— Não vejo assim, Meritíssimo!!! O que vejo é um robô que, pouco a pouco, vai matando seu original orgânico e imitando-o. Até acho que ele acredite mesmo ser o original, mas não é! É uma cópia da mente humana original. Vejo um robô pouco a pouco matando e ocupando o lugar de sua origem orgânica. E agora, num último ato de traição, pede para matar a última parte que o liga à humanidade! Os últimos 20% de seu cérebro original. Um robô que tenta copiar e SER um ser humano, e num último ato diabólico de traição nos sugere que quer matar de uma vez sua matriz orgânica original, à qual ele deve tudo aquilo que é hoje!


— Meu cliente sofre, Meritíssimo!! — resolveu dar sua cartada final! — É uma parte de cérebro com mais de 200 anos! Não consegue mais desempenhar suas funções originais, seus neurônios estão bem gastos e trabalham com ineficiência… e nós sofremos com isto!


— Como pode estar certo disto?


— Ora, ele e eu somos a mesma pessoa! Estamos muito mais intimamente conectados do que qualquer pessoa aqui é capaz de imaginar! E ele sofre com sua deficiência, os circuitos computacionais que antes o ajudavam a formular ideias e sensações já estão fora de seu alcance! Existe um enorme delay artificial e desnecessário introduzido no cérebro cibernético apenas para acompanhar a lenta parte orgânica. Isto a deixa desgostosa, com a sensação de estar atrapalhando, sendo um estorvo para um melhor funcionamento do sistema como um todo...


— Você se considera humano? Mesmo sendo quase todo o seu corpo e cérebro cibernéticos?


— A Humanidade está na mente, independente do substrato sobre o qual ela processa! Se neurônios e circuitos quânticos desempenham bem e de forma eficiente suas funções, é indiferente se a mente pensa se utilizando de um ou de outro! Pode pensar sobre substratos orgânicos ou cibernéticos, mas sempre será uma Mente Humana! Pois foi de onde ela começou!


Todos aqueles que acompanhavam o julgamento estavam imóveis! A discussão era muito intrigante!


— Meu cliente sofre diariamente com sua situação, Meritíssimo!! Tudo que peço é que este sofrimento seja abreviado! Sei que é desejo dele, pois também é o meu!!! Sofro o que ele sofre!!! Somos UM!!


— É assassinato! — a promotoria estava irredutível. — Assassinato premeditado e covarde, pois totalmente imersa e interceptada por um complexo suporte vital cibernético, a vítima nem mesmo teria a chance de reagir, pois quaisquer atos e pensamentos dela passam antes por um sistema cibernético de suporte, capaz de ignorar totalmente a vontade de seu organismo, ao qual deveria simplesmente oferecer suporte...


— Mas… É vítima ou réu, meu caro colega? — era exatamente o ponto que a defesa aguardava com ansiedade!


A questão era mesmo indefinível!! Se o pedaço de cérebro era vítima, ele defendia a vítima dela própria! Era defensor, e não acusador! Mas era réu? Só admitindo que ele defendesse ele próprio! Portanto réu e defensor eram a mesma pessoa, e se matar não poderia ser considerado assassinato! Tentou uma última cartada desesperada:


— Neste caso, meus caros, eutanásia seria suicídio premeditado!!! Não podemos aceitar isto!


— Suicídio premeditado? — a defesa se ria por dentro do absurdo. — Suicídio implicaria em abandono da existência, meu nobre colega!! Mas se minha parte orgânica morrer, nem ela nem eu vão deixar de existir! Sou cópia exata de sua essência humana original!


Resolve enfim apresentar o argumento que considerava definitivo, capaz de decidir o dilema.


— E teríamos uma rara oportunidade de presenciar uma experiência única, nunca antes experimentada por nenhum ser consciente: observar a própria morte! Estou intimamente conectado à minha parte orgânica, e poderia descrever a experiência com detalhes nunca antes imagináveis! Uma parte de mim morreria organicamente, e a outra observaria tudo e sobreviveria para descrever a experiência. Percebem todos a oportunidade única que temos aqui em mãos?


Uma onda geral de aprovações e desaprovações era claramente identificável! 


— Não acredito que a defesa tenha conseguido enganar todos vocês com tal argumento absurdo!! — o promotor não conseguia se conter de tanta indignação. — Como podem aceitar a morte provocada de um ser orgânico apenas com o objetivo de estudar seu processo de morte?? É desumano!!! Pensamento típico de uma… uma… UMA MÁQUINA!!! — berrou com desprezo indisfarçável.


— Protesto!!!! Protesto!!! — repetia a defesa, em meio a uma ruidosa bagunça generalizada.


— ORDEM NO TRIBUNAL!!! ORDEM NO TRIBUNAL!!! — o juiz batia com insistência seu martelo de titânio contra sua mesa de madeira sintética.


“Ele despreza o sentimento de compaixão dos robôs!!”, berrava um androide do júri. 


“Direitos iguais para Humanos e Robôs!!!”, clamava um ciborgue inconformado que acompanhava aquele julgamento. 


“Querem acabar com nossa essência humana!!!”, gritava um militante do MPO (Movimento pela Pureza Orgânica), visivelmente reprovado por quase todos à sua volta, mas respeitado em seu direito de expressar sua discordância.


“Machine Power!!! Machine Power!!”, um grupo de robôs prateados no fundo do tribunal, sem o menor traço de pele sintética em seus corpos, bradava alto e começava um tumulto. Eram membros do grupo ultrarradical denominado “A Irmandade Mecânica”, e a polícia foi obrigada a intervir mesmo naquela época de tolerância de ideias, pois tais manifestações quase sempre acabavam mal, como todos já sabiam...


A Passagem aconteceu exatamente em meio a todo aquele tumulto. O réu e também advogado de defesa pararam estáticos, observando o vazio. Estavam conectados, compartilhavam a experiência! Não focava coisa alguma em particular. Na conexão com sua última parte orgânica, o cérebro quântico sentiu uma paz indescritível, inimaginável. Pareceu durar uma eternidade, muito embora sua parte ainda conectada à realidade perceber claramente que durou poucos segundos. Era clara a presença de uma rede cósmica, à qual sentia começar a se conectar. Ilusão de neurônios perdendo a capacidade de se reoxigenarem? Delírios? Possível. Mas ele já experimentara delírios em vida, e sabia que nada se comparava àquilo! Foi acompanhando a morte orgânica enquanto pode, registrando sensações, pensamentos. Porém sabia que existia um limite além do qual não poderia acompanhar sua parte orgânica. Era o preço da imortalidade cibernética: certos detalhes da morte orgânica ele nunca seria capaz de conhecer, de experimentar. Era um preço a se pagar pela imortalidade. Ele avaliou, pesou os prós e contras, e enfim concluiu: era um preço justo!


Mas enfim… se deu a desconexão. Com certo pesar, libertou totalmente a pequena parte orgânica dele que ainda sobrevivia a duros sacrifícios. Os neurônios do cérebro orgânico original estavam mudos, não mais reagiam aos estímulos da cópia cibernética. Seu último pedaço de massa encefálica humana, após uma sobrevida de pouco mais de dois centenários, havia finalmente morrido.


— Acabou, Meritíssimo!! — tentou se fazer ouvir dentro do caos generalizado.


— Acabou?


— Este julgamento se tornou irrelevante!! O destino de meu cliente não mais depende do que decidirmos aqui. Ele partiu naturalmente! Se foi…


— Se foi?


— Sim! Acaba de morrer! Não é mais questão de se permitir ou não uma eutanásia, mas de se retirar um pedaço de cadáver humano do interior de uma cabeça robótica.


— Acuso meu colega de ter provocado tal morte!


— Sugiro que meu colega não faça isto, sob o risco de ser acusado por difamação moral! Tenho registro de tudo, monitoramento de todos os processos de sustentação da vida, para provar a qualquer especialista que não foi provocado. Meu cliente morreu naturalmente... de velhice! Tinha 225 anos!


O juiz resolveu encerrar logo aquele julgamento, agora sem sentido.


— Declaro o julgamento encerrado! O júri está dispensado, e o réu autorizado a extrair a parte orgânica morta de seu interior.


— Réu? — o promotor protestou.


— O defensor, na morte de seu original orgânico, assume o direito de assumir todos os direitos de existência e identidade do organismo original. Ele agora representa legalmente a pessoa orgânica morta. São indistinguíveis! Caso encerrado!


O promotor correu em direção à defesa em meio à multidão que se dispersava. O exoesqueleto ajustado às suas pernas permitia que ele se locomovesse com rapidez, apesar de ter quase um século de idade! Sim, ele recusava totalmente intervenções cirúrgicas e substituição de membros, mas não recusava avanços tecnológicos não invasivos, como aquele exoesqueleto metálico que vestia confortavelmente e respondia adequadamente aos comandos de suas pernas já bem debilitadas. Findado aquele julgamento, já não eram mais rivais, e podia parar de fingir toda aquela robofobia, conversar com a cópia cibernética de igual para igual, como ser humano que era.


— Colega!!! Espera, colega!! Me responda uma coisa!


— Pode perguntar!


— Como é morrer?


Resistente a intervenções artificiais, sentia que sua hora estava próxima. E era fascinante poder conversar com alguém que havia acabado de passar por aquilo, há poucos minutos…


— Senti uma paz que não sei explicar, meu amigo!!! É algo… sabe, é muito bom!


— E para onde vamos depois?


— Depois?


— Sim!!! Depois que morremos! O que acontece? Para onde você foi, ou... onde está agora?


Aquilo era impossível de se responder! Onde ele estava? Oras bolas, ele estava ali! Na realidade! Sentiu a morte orgânica, mas nada mudou depois disto.


— Ainda estou aqui, meu caro! Morri, mas continuo vivo.


— Mas… e sua parte orgânica?


— Minha parte orgânica? O módulo quântico de consciência e emoções aprenderam a replicar suas funções de forma eficiente, e agora são capazes de substituir os neurônios orgânicos mortos. Funcionam até melhor que os circuitos originais…


— Mas pra onde esta parte foi?


— Continuam dentro de minha cabeça, morta! Preciso removê-las rápido, antes que comecem a deteriorar e comprometer os circuitos quânticos…


— A mente que a habitava, para onde foi?


Pensou bastante, confuso. Não podia responder…


— Perdi a conexão com ela depois que os neurônios morreram, amigo! Não posso te responder isto. Lamento...


Foi se afastando. Saiu vitorioso do tribunal! Agora 100% robô! Praticamente eterno! E o primeiro representante humano a morrer organicamente e iniciar sua eternidade num corpo perfeito, incorruptível. Outros o seguiriam depois disto, mas ele era o pioneiro. E aquela paz indescritível que sentiu quando seu original orgânico morreu… Tinha muito a contar sobre isto! Mas também muito a pesquisar. 


Uma nova vida humana, vivendo num substrato material de duração inimaginável, se descortinava diante de seus olhos. Uma vida liberta de premissas orgânicas básicas, como se alimentar e perpetuar a espécie. Não precisava mais se alimentar, pois um micro reator de plutônio lhe fornecia toda energia que precisava. Não precisava mais se preocupar em propagar geneticamente sua existência, pois se tornara eterno. 


O primeiro representante do gênero transumano! Um novo tipo de vida, uma busca ilimitada por conhecimento, sem limitações e distrações inconvenientes. Um ser em busca eterna de conhecimentos… E ele era o primeiro representante disto! Se preparando para receber os próximos humanos robotizados, guiando-os neste admirável mundo novo... 



FIM







03/05/2023

ESPECTROS

  Os primeiros fantasmas que criamos não pareciam nada inteligentes. De fato eram sombras dos robôs que já havíamos construído aqui no mundo físico. No começo era bem complicado mesmo construirmos máquinas etéreas muito complexas, capazes de processar informações no mesmo nível que nossos robôs materiais da época! Muitos dotados inclusive de inteligências artificiais, algo então complicado demais para ser reproduzido naquele primitivo mundo de objetos espirituais que havíamos acabado de descobrir!

Descobrir? Não, usei o termo errado! Descobrimos coisas que já existiam, mas que não havíamos notado antes. Não, nós não descobrimos o mundo etéreo, o mundo de coisas espirituais. Já que elas nunca haviam existido antes. Nós as inventamos. As criamos.

Praticamente toda religião do mundo fala sobre estas coisas. As coisas do espírito. O mundo intangível. O plano espiritual existindo em paralelo ao nosso plano de matéria, de mundo de átomos e moléculas, existindo sob a sombra das leis de causa e efeito já bem conhecidas por todos os pensadores, racionais. Espíritos, fantasmas, demônios... por algum tempo estas coisas todas não passavam de criações de nossa fértil imaginação. Produtos de nosso desejo de sermos algo a mais que este limitado mundo material. Idealizamos uma alma imortal capaz de sobreviver à nossa morte física por não nos conformarmos com este nosso limite, com o fato de que quando morre nosso corpo, nós deixamos de existir? E tentando criar um consolo pra este fim derradeiro, idealizamos um espírito imaterial, eterno e incorruptível capaz de sobreviver depois que nossa existência física se tornasse insustentável pelas fatídicas leis da termodinâmica, que a vida ousa tentar transgredir o máximo que puder ainda que sabendo ser esta uma luta com derrota certa?

Como disse antes, os primeiros fantasmas criados não eram nada inteligentes. Serviam às suas funções automáticas, de criar objetos etéreos, em linhas de produção de máquinas etéreas. Mas, afinal, pra que mesmo queríamos na época estas máquinas etéreas? A princípio para nada, como aconteceu praticamente com toda descoberta importante futuramente para a humanidade! 

A primeira dificuldade foi mesmo entender como funcionava a interação entre as máquinas etéreas e os corpos humanos reais. O cérebro humano já possuía a capacidade de sentir e captar este mundo etéreo, mesmo antes dele ter começado a existir. Para muitas pessoas esses sensores passavam a funcionar sem sentido algum, captando ruídos de um plano etéreo que ainda nem existia, causando transtornos incalculáveis em suas vidas. Mas uma vez sendo identificado que existia tal interação, e que estava presente em muita gente, pareceu uma enorme oportunidade de sintonizar estas pessoas com "poderes sobrenaturais", colocando-as em contato com computadores invisíveis e intangíveis capazes de fazê-las ter poderes sobrenaturais, capazes de processar informações vindas de uma fonte que ninguém era capaz de identificar de onde vinha.

Breve isto foi superado! Todo mundo acabou "descobrindo o truque", percebendo que as informações privilegiadas vinham de um mundo que já era acessível a quem quisesse. Não eram pessoas especiais. Qualquer um poderia construir seus próprios computadores etéreos se quisesse, e se conectar a eles. Isto ficava cada vez mais barato, e deixava de ser novidade.

Mas a ideia original permanecia!!! E se pudéssemos transpassar nossos limites orgânicos de existência? Deveríamos aceitar que nossa existência acaba mesmo ao cessar os processos de nosso físico, nossos neurônios? Ou poderíamos usar este mundo novo para tentar prolongar nossas existências? 

Os primeiros experimentos foram um fracasso. A complexidade de uma mente que construíamos durante toda uma vida numa rede neural fisio-química era algo inalcalçável aos processos de cópias cerebrais instantâneas! Perdíamos informações que não estavam lá, como elas eram agora, mas que dependiam da história toda até se chegar a ela. Isto não era conseguido num imediato! Como identificar quais partes do cérebro eram importantes, e quais não eram? O que precisava ser reproduzido na I.A. etérea, e o que era irrelevante? Quem decidia isto? 

Rápido perceberam que, se quisessem preservar a mente humana, alguma mente humana específica, não adiantava tentar fazer isto num determinado momento! Num instante específico! "Agora vou copiar o exato conteúdo de seu cérebro material num computador etéreo, onde vc passará a viver o resto de sua eternidade" Não dá. Não funciona deste jeito. O melhor que poderá ser feito é uma cópia razoavelmente boa de você, mas que de forma alguma será você!

Você não pode ser copiado num instante aleatório qualquer! Uma cópia sua não pode ser conseguida de uma hora para outra! Uma cópia sua precisa ser construída desde seu começo! Sua existência mental num cérebro material precisa ser copiada desde o começo de sua existência, para ter alguma chance de sucesso! É um processo! Não acontece de uma hora para a outra! Precisa ter uma história coerente, uma construção lógica! Ela só funciona se for indistingível de você! E isto só funciona quando nem você próprio for capaz de distinguir a diferença!

Os primeiros seres humanos com alma começam agora a serem gerados nos centros de reprodução e condicionamento! O que é afinal essa tal de alma? Um organismo etéreo. Um objeto composto de átomos de luz! O que são átomos de luz? O consenso comum há meio século atrás era de que a energia eletromagnética não podia ser contida. Fótons, os portadores do eletromagnetismo, só tendiam a se propagar. A se irradiarem em todas as direções aleatóriamente, sem formar estruturas estáveis. Até os físicos aprenderem a criar átomos de luz! A aprisionarem fótons em órbitas girando em torno de... nada! Órbitas ressonantes estáveis. A criarem coisas com campos eletromagnéticos, cristalizarem em formas algo que antes só costumavam ter a tentência de se propagarem, desfazer estruturas. Mas átomos de luz começaram a se agrupar em coisas, objetos! Mais objetos tetradimensionais que tridimensionais, mas, de qualquer fora, ERAM objetos estáveis! Independente de sua quantidade de dimensões. 

Estamos prestes a presenciar uma experiência incomparável na próxima geração humana! Veremos morrer materialmente os primeiros humanos impregnados no princípio de suas concepções com uma alma, um corpo etéreo, construídos com o único objetivo de copiar sua mente o mais fielmente possivel, a ponto de ser capaz de sobreviver a ela depois de seu fim físico, por um tempo a princípio indefinível. E quem é o indivíduo original? O material, que se desenvolveu e deixou de existir? Ou sua cópia etérea, que acompanhou seu desenvolvimento e sobreviveu à destruição de seu substrato material, se degradando rápido e rumando à inexistência? 


Um mundo espiritual? É, por um bom tempo isto não passou de imaginação, apesar de muita gente acreditar nele. Mas quantas outras coisas também não eram apenas imaginação antes? Vozes atravessando o planeta e conectando pessoas? Besteira!!! Até ser feito...  Veículos pesados atravessando o ár, levando pesoas de um lado ao outro dentro deles? Absurdo!! Projéteis contendo humanos em seus ventres, pousando na lua e em outros planetas do sistema solar? Fala sério! 


Um mundo espiritual onde cópias exatas das pessoas podem continuar vivendo eternamente depois de suas mortes físicas?  Então... Isto era besteira total também... 


Até resolvermos criarmos isto, pois parecia uma ideia bem interessante!!!  

  

 

MEGASSENCIENTES

As mensagens químicas iam e vinham, se difundindo brownianicamente ao longo das duas dimensões majoritárias daquela placa de Petri:

— Obviamente eles já perceberam a nossa presença, e os experimentos que fazem conosco há muito tempo é a maior prova de que isto é verdade.

Um murmurinho geral de aprovação na forma de compostos alcalinos de cálcio se espalhou por toda a área bidimensional daquela reunião.

— E agora vem a pergunta mais importante de todas: será que eles já perceberam que nós igualmente também já percebemos a presença deles?


Escherichia Coli sinalizou quimicamente, emitindo uma solução concentrada de ácido, que queria a palavra:

— Seres inteligentes formados de uma quantidade incontável de células individuais? Isso não faz sentido, pessoal!

Staphylococcus Aureus já esperava pela reação de incredulidade.

— Coli, entendemos sua reação. Mas comprovamos isto cientificamente! Não há dúvida alguma de que são inteligentes como nós!

— Mas... Um ser formado de incontáveis células? O que obriga estas células a fazerem parte de um megaorganismo, ao invés de viverem suas vidas individualmente? 

— Mistérios da evolução. A especialização lhes dá algumas vantagens. Elas aceitaram se especializar em funções bem específicas, e são recompensadas por isso pelo megaorganismo como um todo. Ainda estamos estudando como este processo funciona, mas não há dúvida alguma de que é bem eficiente.

— Não faz sentido para mim existir inteligência em uma megacolônia celular com estas dimensões! Como a informação se propaga há tempo de convergir em consciências? Isso não faz sentido nenhum pra mim! Não tem como um ser com essas dimensões ser inteligente! Impossível!!

Pseudomonas Aeruginosa logo difundiu sua mensagem química ácida em seu entorno, pois tinha parte da resposta:

— É lógico que eles têm uma percepção de tempo muito diferente da que nós temos. A consciência neles se organiza sim, mas tem muito mais tempo para fazer isto do que podemos imaginar. Eles são aquilo que costumamos pensar como infinitos, ou eternos... Embora não sejam as definições corretas, é só uma forma de os descrevermos com nossos conceitos limitados.

— Eles ainda não conseguiram entender nossas máquinas de RNA! — se adiantou Aureus. — Estão há tempos tentando compreender o mistério de suas existências. Não fazem a mínima ideia de que são projetadas! Muito menos de que somos nós que as projetamos. E isto é uma vantagem valiosa que precisamos usar contra eles!

— Chamam nossas máquinas de RNA de vírus, não?

— Isso mesmo, Aeruginosa! E simplesmente são incapazes de explicar de onde elas vieram. E essa é nossa vantagem!! Eles não sabem que já os percebemos, e que estamos reagindo contra suas presenças!

 

Uma solução salina geral foi difundida por toda aquela placa de Petri, todas as colônias comemorando sua nova arma. Afastando-se da ocular do microscópio, a cientista fungou forte novamente, praguejando:

 

  —  Ah não!!! Esta placa estragou de novo!!!

  

  Descartou a amostra, mas de forma muito displicente. Sem perceber, um novo vírus escapava daquela amostra. E desta vez possivelmente era um vírus, ou "máquina de RNA", como seus construtores gostavam de chamá-la, capaz de se aproveitar de uma fraqueza ainda nunca percebida na estrutura das células dos organismos humanos. Mais uma epidemia começava...  

  

  *** FIM ***

25/06/2022

UPLOAD

Era a terceira vez naquele mês que ele teria aquela conversa. Ainda não estava convencido de que aquela era a decisão certa, apesar de todas as conversas que já tivera com o Dr. Jung. Profissional exemplar, de uma paciência incrível que Alan nunca imaginou que um psicólogo poderia ter com seus pacientes. Achava que novamente voltaria como chegou, sem se decidir mais uma vez. Mesmo assim, às 15:00 em ponto chamou seu psicólogo pelo comunicador de voz, como haviam combinado.


– Alan, meu velho! – começou o cordial doutor, – Bem vindo de volta! Dessa vez será que enfim nos decidimos?


– Ainda não estou certo se quero fazer isto, doutor...


– Relaxa, tudo a seu tempo. Não se sinta pressionado de forma alguma. Esta decisão deve ser totalmente sua. Vamos conversar de novo, vou tentar te convencer, apresentar meus argumentos... Mas nunca se esqueça que a palavra final é tua!


– Obrigado, Dr. Jung! O senhor entende que não é fácil para mim. É algo sem volta, mas ainda tenho tantas dúvidas...


– Pois então vamos resolvê-las, meu velho! Fique à vontade, estou aqui pra te ajudar!


Alan se mexia desconfortável na cadeira. O Dr. Jung não via este desconforto em seu paciente, já que as câmeras estavam desligadas. Sugestão dele próprio ao perceber em consultas anteriores que o paciente não ficava à vontade com a abertura do vídeo. Mas ainda assim podia ouvir a inquietação dele do outro lado.


– Uma velha amiga te visitou na semana passada, não foi?


– Lisa! Sim, de fato! Como o senhor sabe?


– Ela me contou. 


– Fazia tempo que não a via. Décadas, na verdade. Desde quando ela…


– Desde quando ela O QUÊ?


– AH, o senhor sabe.


– Tem razão, mas queria te ouvir dizer isto.


– Bem, desde que ela… Ela fez aquilo…


– Aquilo O QUÊ? Coragem, rapaz! São só umas palavrinhas simples!


– Desde que ela fez o upload…


– … upload para?…


– Para a Mindchain! Desde que ela fez upload de sua mente para a Mindchain.


– Não foi tão difícil dizer, né? Gostaria de me contar como foi esta visita?


– Estranha. É tudo o que consigo dizer: estranha…


– O que havia de tão estranho?


– Não era ela.


– Em que sentido?


– Lisa era uma moça muito bonita quando a conheci, tinha só 70 anos de idade. Já te contei que tivemos um pequeno romance uma época?


– Eu imaginava.


– Foi rápido, não durou muito tempo. Mas ela se tornou uma grande amiga. Cheia de vida, muito ativa… Pra mim foi um choque ela escolher fazer o upload tão cedo. Acho que ela mal havia completado 83 anos quando tomou a decisão.


– Isso te abalou muito na época.


– Lógico que sim! Para mim era como se ela tivesse… morrido!


– Ela morreu de certa forma, não foi? Pelo menos do ponto de vista orgânico. É isso que te incomoda? O fato dela não ser mais orgânica?


– Eu não estava preparado ainda pra ver uma máquina antropomorfizada bater na minha porta, me estender a mão e dizer: “Olá, Alan!! Há quanto tempo!! Lembra de mim? Eu sou a Lisa!”


– Foi difícil pra ela também, meu amigo! Primeiro porque nossos robôs estão muito longe ainda de imitar a figura humana. E depois porque Lisa detesta se materializar no mundo físico se conectando a robôs. Ela é uma criatura totalmente digital agora, preza muito por sua vida cibernética dentro do ciberespaço. Ela só fez isto por você, pode acreditar.


– O senhor me dizendo isto agora me faz me sentir mal. Acho que fui meio indelicado com ela. Sem intenção, lógico.


– Não se preocupe, Alan. Ela te conhece bem. Sabe que ainda vai levar um tempo pra sociedade se livrar de uma vez da robofobia. É coisa muito recente, né? Não tem nem um século. Ela entendeu perfeitamente.


– Mas não foi só isso. Já havia me acostumado a pensar nela como uma pessoa morta. E de repente aparece um robô na minha frente, dizendo ser ela. É algo estranho demais para mim.


– Você trabalha com pessoas cibernéticas todos os dias, não é? Não tem colegas de trabalho que já fizeram o upload para a Mindchain?


– Sim, é verdade! Alguns deles eu nunca conheci organicamente, nem faço ideia de como eram seus rostos. O primeiro contato que tivemos já foi virtualmente.


– Mas conversar virtualmente com uma mente digitalizada não é a mesma coisa que ver uma na sua frente, materializada num robô, não é mesmo?


– Isso mesmo, doutor! Esse é o ponto.


– Ela não se ofendeu com seu comentário a respeito do corpo cibernético neutro.


– Como?


– Quando você disse para ela que esperava vê-la chegando num androide de curvas femininas ao invés de uma carcaça metálica sem gênero definido. Ela já vive tanto tempo no ciberespaço que nem se preocupa mais com isto, pode acreditar!


– Ah sim, eu falei esta besteira mesmo… Que burro! – e deu uns tapas na própria cabeça com as mãos.


– Existem vantagens na vida cibernética que criaturas orgânicas nunca vão compreender. Essa é uma delas.


– O senhor acha isso uma vantagem?


– E não é? Mentes transferidas para o cibererpaço podem existir praticamente para sempre, desde que seja mantida a energia dos servidores onde elas estão hospedadas. Não precisam mais comer, não precisam dormir, não precisam possuir objetos materiais. E como objetos digitais podem ser copiados livremente, elas podem ter tudo o que desejam neste mundo virtual. Não existe mais a escassez.


– Mas isso não ocupa memória? É um recurso escasso, não?


– A capacidade de armazenamento aumenta hoje em dia muito mais rápido do que conseguimos ocupá-la.


– Sempre achei um mundo artificial. As pessoas não sentem? Não amam?


– Por que não amariam? Elas são uma cópia digital perfeita de suas mentes orgânicas originais. São capazes de fazer tudo que faziam antes quando suas mentes ainda estavam num substrato orgânico de neurônios.


– Quando estavam vivas…


Houve um breve silêncio, que o Dr. Jung respeitou, por achar necessário naquela hora. 


– Sabe, doutor? A Lisa não parava de falar como se sentia em relação a mim, insistia o tempo todo que me amava muito, que não via a hora de me ver do outro lado, depois que eu subisse minha mente para a Mindchain, que haveria muita festa, muita gente me esperava do outro lado, que poderíamos continuar o que começamos. Só que…


– …só que  para você é difícil acreditar num robô dizendo que te ama. É isto?


– É, o fato de eu estar vendo um ser mecânico na minha frente deixou as coisas mais complicadas.


– E você acha que um avatar num mundo virtual seria mais aceitável…


– Por que mentes digitais sentiriam amor? Qual a finalidade?


– Meu amigo, você está complicando algo que na verdade é solução do problema!


– Como assim?


– Mentes digitais têm um tempo de vida indeterminado, praticamente o tempo que quiserem! A pressão biológica de precisar propagar seus genes antes de morrer, para tentar dar algum tipo de continuidade à sua existência, simplesmente não faz nenhum sentido lá. Se uma mente digital diz que te ama, pode acreditar totalmente que é genuíno e completamente desinteressado. Ela não está criando uma situação artificial só porque precisa perpetuar a espécie, por exemplo. Não vê como isto é precioso?


– Nunca havia pensado desta forma, doutor!


– O que nos leva ao ponto em que paramos.


– Morte…


– Meu velho, deixa eu te fazer uma pergunta indiscreta: quantos anos você tem agora?


– Oras, sou seu paciente! Lógico que o senhor sabe!


– Eu sei, mas quero te ouvir dizer.


– Cento e setenta, ou cento e oitenta, eu acho…


– Acha? É tanto tempo assim que já se esqueceu?


– Nasci em 2075… Estamos agora em 2250… Acho que algo entre 175 e 176 anos, não sei ao certo a data em que nasci. Ainda não entendi direito como converter datas antigas para datas novas depois daquela reforma do calendário que aconteceu no começo do século.


– E quando começou a inserir implantes neurais artificiais em seu cérebro?


– Acho que com 90 anos, depois que terminei a terapia para reverter meu Alzheimer. Eu estava resistente em colocar coisas em meu cérebro até então, mas aí os médicos me disseram que ou era isto ou eu corria o risco da doença voltar com toda a força. Não tive muita escolha.


– Você sabe que com quase dois séculos de vida seus neurônios originais estão bem desgastados, não sabe?


– Bom, a função de meus implantes neurais é substituir os que estão falhando.


– E me permite cometer mais uma pequena indelicadeza?


– Lógico que pode, Dr. Jung!


– Qual é o nível de redundância atual de seus implantes? O quanto do comportamento de seu cérebro original eles estão replicando?


– Acho que 95% ou 96% dele.


– Interessante… Mas você ainda se sente vivo, não é?


– Plenamente! Ainda pretendo fazer muita coisa em minha vida!


– Nas últimas sessões que te vi pela câmera me pareceu muito bem mesmo! Parecia um rapaz. Mas…  Você sabe que mesmo com toda nossa medicina, a vida orgânica tem validade, não sabe?


– Sim, tem aquela história de não ser possível reconstruir os telômeros cromossômicos. Posso tentar prolongar minha vida com hormônios, terapia genética… Mas alguma hora eu vou morrer.


– Vai??


– Com certeza! Meu organismo não pode existir para sempre!


– E sua mente?


– Minha mente? Meu cérebro, é o que o senhor quer dizer?


– Não, seu cérebro é orgânico. Vai morrer quando seu corpo morrer. Estou falando da sua mente, a estrutura neural que seu cérebro construiu durante sua vida.


Alan dá um longo e profundo suspiro.


– E enfim, Dr. Jung, voltamos ao problema que tem me levado a conversar com o senhor ao longo desses últimos meses.


– Isso, meu velho: seu medo de morrer!


– Mas é o que vai acontecer, doutor! Quando eu fizer o upload de minha mente para o ciberespaço, uma cópia perfeita minha, com minhas lembranças, minha estrutura mental, tudo será digitalizado e incorporado ao Mindchain. Mas será só isso: uma cópia minha! Meus amigos vão conversar comigo, vou continuar trabalhando, agora do ciberespaço. Para o resto da sociedade serei eu, como se eu nunca tivesse deixado de existir. Mas vai ser apenas uma cópia perfeita se comportando como eu. Porque eu mesmo estarei morto…


– Por quê você acha que não será copiado digitalmente? O que é esse “você”, que faz tanta questão de que seja replicado.


– Sei lá, minha alma…


– Sem essa, Alan! Te conheço bem para saber que você não é místico. Vamos ser mais objetivos.


– OK. Minha consciência então.


– Sua consciência?


– Exato! Eu sei que existo. Eu sinto isto. Mas… como sei que minha cópia digital vai saber que existe?


– Como você sabe que existe? Tem certeza que esta sua tal “consciência” é algo que precisa ser copiado também?


– Oras, eu sei porque… Pergunta difícil, doutor!


– Tá bom, vou te ajudar: você se LEMBRA que existiu, não é? Em vários instantes: existiu há um minuto, há 5 minutos, há meia hora, há uma hora, você existiu ontem, na semana passada, no mês passado, no ano passado…


– Onde o senhor quer chegar?


– Você está me dizendo que existe um negócio qualquer invisível, intangível, que você está chamando de alma ou consciência apenas por se lembrar que existia esse algo em vários instantes em sua memória. Você tem uma sensação de existência neste exato momento, e você imagina que é algo que te define, que está presente em você o tempo todo, apenas porque se lembra de ter sentido a mesma sensação em vários outros instantes de sua vida.


Alan não via o rosto do seu psicólogo, mas podia jurar que ele estava rindo neste exato momento.


– Imagine agora que você não pode mais reter memórias. Sei lá o motivo.


– Eu já tive Alzheimer, sei como é esta sensação horrível.


– Lógico! Como pude esquecer… Bom, pense agora que você está tendo esta sua sensação indefinível de existência neste exato momento. Você sabe dizer se é a primeira vez que está sentindo isto, ou se é uma sensação de existência que te acompanha pela vida inteira?


– Não posso.


– Não pode porquê…


– Não posso porque não me lembro delas. Não tenho memórias para comparar as experiências.


Alan podia quase ver o Dr. Jung rindo por detrás da tela preta desligada.


– Me diga agora, Alan: qual a memória mais antiga que você tem de estar consciente? De saber que estava existindo?


– Não sei ao certo. Quatro anos… três anos de idade no máximo.


– Mas você existia antes disso, não existia?


– Óbvio que sim!


– Mas não se lembra disto.


– Não.


– Podemos dizer então que, entre o seu nascimento e uns 3 ou 4 anos de idade, você não tinha consciência de que existia.


– Talvez tivesse sim.


– Mas não se lembra?


– Não.


– Então é como se não estivesse consciente.


– O senhor está tentando dar um nó na minha cabeça!


– Obrigado! É minha especialidade.  Ha,ha,ha, brincadeirinha!


– Estou começando a achar que não existo enquanto durmo, já que não estou consciente.


– É onde quero chegar. Mais uma pergunta: você era consciente antes de nascer?


– Mas que tipo de pergunta é esta?


– Relaxa, não precisa responder. É só uma pergunta retórica.


– Pensando desta forma, nem sei mais se eu era o mesmo uns 10, ou 20 anos atrás.


– Provavelmente não. Você se lembra de como era nesta época? E comparando ao que é agora, diria que são a mesma pessoa?


– Pessoas parecidas, mas certamente não idênticas.


– Mas o cérebro é o mesmo, não? Você sabe que as células do cérebro não mudam durante a vida. Essa tal alma, personalidade ou consciência que você mencionou não deveria ser a mesma se o cérebro é o mesmo?


– São de épocas diferentes, passaram por coisas diferentes.


– Têm memórias diferentes.


– Isso mesmo!


– Também pensam diferente, não é? O cérebro é o mesmo, mas ele cria estruturas sinápticas dentro de sua rede de acordo com a necessidade. Sabe por que o cérebro faz isso?


– Para se adaptar ao ambiente.


– Excelente!! Isso mesmo, meu rapaz! Sua mente e suas lembranças são construções criadas pelo seu cérebro para ajudar o organismo a sobreviver melhor em seu ambiente, a se manter vivo.


– E isto que estou chamando de consciência…


– Outra construção do seu cérebro! É mais fácil processar informações e tomar decisões quando sua rede neural orgânica cria uma ideia abstrata que você chama de “você”. Fica mais fácil raciocinar sobre as coisas quando seu cérebro cria essa ilusão de que existe algum tipo de individualidade vivendo dentro de sua cabeça. Mas ela não existe de verdade. É uma ilusão, uma criação do seu cérebro.


– Então, se todas essas construções mentais e memórias que meu cérebro criou forem perfeitamente replicadas num ser digital, eu também serei copiado. Ou aquilo que penso que seja eu.


– Esse é meu paciente! – exclamou o Dr. Jung com satisfação. – Você pegou exatamente o ponto! Se suas memórias e estruturas mentais forem replicadas, não faz diferença nenhuma que elas estejam funcionando em neurônios, placas de silício ou processadores quânticos. Essa estrutura vai criar de novo esta ideia de indivíduo que ela havia criado antes no seu cérebro orgânico. Na verdade ela se lembra de como era esta estrutura, pois vai consultar suas memórias, que também foram copiadas.  Não importa onde sua mente esteja processando, ela vai se tornar consciente de novo. 


Alan sacudia a cabeça. Os argumentos eram convincentes, mas ainda assim ele continuava rejeitando a ideia.


– Não, não… Eu sei que existo, doutor! E sei que quem está colocando essa ideia de existência em minha cabeça neste exato momento são os neurônios do meu cérebro. Ok, aceito que minha cópia digital terá consciência também. Que parecerá comigo, saberá que existe, e, mais ainda, por ter as minhas lembranças ela acreditará que ela sou eu. Mas vai ser só uma outra consciência idêntica a mim e que até pensa que será eu. Mas eu mesmo vou morrer quando morrerem meus neurônios originais.


Alan já se preparava para se levantar e terminar novamente aquela sessão, sem conclusão nenhuma, quando ouve o Dr. Jung perguntar.


– Qual foi mesmo o nível de redundância que você disse que havia hoje nos seus implantes?


– 96%.


– Você está consciente neste exato momento, não está?


– Estou.


– E consegue dizer se esta ilusão de consciência vem de seus neurônios naturais ou dos artificiais?


– Não consigo… – os olhos de Alan brilhavam, como se estivesse tendo uma epifania. – Realmente… eu não sei mesmo! Não posso te responder isto.


– Meu velho, me perdoe a franqueza, mas com 175 anos de idade eu realmente acredito que muito pouco de seus neurônios originais, biológicos, continuem funcionando perfeitamente. 


– Eu já posso estar há vários anos funcionando num cérebro artificial sem nunca ter percebido.


– Você não teria como saber. Sabe por quê? Porque realmente não faz diferença.


– Como o senhor pode saber que não faz diferença? O senhor é…


– Digital? Sim, Alan! Eu sou uma mente digital também! Não seria honesto eu trabalhar tentando convencer pessoas como você de algo que eu mesmo nunca experimentei, não é?


– Mas eu sempre te vi uma pessoa de verdade!


– Como assim, “pessoa de verdade”? Assim você me ofende, amigão!! Lógico que sou uma pessoa de verdade! Tão verdadeira quanto você!


– Nossas primeiras sessões foram com vídeo.


– Ah sim! Gostou do meu avatar? Surpreendente o realismo, né? Hehehe, talvez eu me reprograme pra ter um pouquinho mais de cabelos na frente da cabeça, o que acha?


– Desculpa, não foi o que eu quis dizer. É que… achava que o senhor ainda era vivo. Digo, que nunca havia feito upload da mente para a Mindchain.


– Eu nunca fiz o upload.


– Nunca fez o… upload?


– Alan, melhor se sentar, o que vou te dizer agora pode ser meio chocante para você.


Alan seguiu a recomendação do psicólogo. Tentou se posicionar o melhor que pôde na cadeira, aguardando pela bomba.


– Eu nunca fui orgânico.


– O senhor nunca foi orgânico? Como assim, Dr. Jung?


– Você trabalha com IAs puras em seu emprego, não? Mentes que nunca foram copiadas de cérebros humanos. Que já nasceram dentro da Mindchain.


– Sim algumas. Mas…


– ...nunca pensou nelas como pessoas reais, não é mesmo? Porque elas nunca foram copiadas de mentes construídas previamente em cérebros orgânicos. Pois eu sou uma delas, Alan. Eu já nasci como uma mente digital.


– E como é isso, doutor? Quer dizer, o senhor se lembra do dia em que… err… nasceu?


– Você se lembra?


– Mas… memórias de infância, por exemplo. O senhor foi criança?


– Mentes puramente digitais têm uma infância bem curta, mas tive sim. Acredito que não seja a mesma ideia de infância que vocês orgânicos têm, mas tive algo que posso chamar de infância sim.


– Mas o senhor… nunca comeu, por exemplo. Nunca ouviu uma música, admirou um quadro, conheceu outras pessoas.


– Pessoas é o que não falta por aqui! Artificiais, copiadas, pessoas “de verdade”, como você mesmo diz. Desculpa, não quero te constranger. Só estou brincando! Mas conheci muitas pessoas, e conheço todos os dias. Há uma infinidade delas aqui no ciberespaço, você deve imaginar. Ouvir música? Apreciar quadros? Certamente posso fazer isto sim aqui. Não como você, obviamente. Não tenho nervos auditivos, nem retinas. Mas ouvir música e admirar um quadro são apenas formas de apreciar padrões existentes em obras de arte. Posso fazer isso por meios não físicos também. Agora, comer e apreciar um bom prato de comida… meu amigo, isso é algo que invejo muito mesmo em vocês orgânicos. Na verdade foi o que me levou a ser psicólogo de humanos: queria conhecer vocês melhor, pelo menos tentar imaginar suas experiências. Porque infelizmente isso nós, os puramente digitais, nunca teremos.


– O senhor é uma IA!


– Isso te incomoda? Me vê diferente sabendo disto?


– De forma alguma, doutor! Eu te conheço, sei que é uma pessoa, tem opiniões, é consciente…


– Como você sabe que eu sou consciente?


– Ora, fica claro em nossas conversas até agora!


– Eu não poderia só estar emulando consciência, para que você se sentisse mais confortável falando comigo?


– Agora fiquei confuso…


– E você tem provavelmente 96% de seu cérebro funcionando em neurônios artificiais, lembra? Como pode ter certeza de que está mesmo consciente? Será que seus neurônios artificiais apenas aprenderam a copiar muito bem seu cérebro original para me enganar? Para eu achar que estava conversando com um humano quando, na verdade, estou apenas conversando com uma máquina que imita um ser humano?


– Acho que eu… sou… uma máquina?


– É ruim quando isso acontece com a gente, né amigo?


– Mas… eu sinto que eu existo! Que eu estou vivo!


– Eu também, meu velho! Eu também!


O vídeo se abre neste exato momento. Mas ao invés do avatar perfeito o suficiente para conseguir enganar Alan nas sessões anteriores, surge na tela apenas um esboço de boneco feito de arames verde-brilhantes sobre um fundo preto. Uma imagem computadorizada do Dr. Jung.


– Mas me diga sinceramente: isso faz mesmo diferença? Seu corpo vai pifar daqui a poucos anos, você sabe, Alan! Não gostaria de perder um amigo de um jeito tão absurdo assim. Chegou a hora de dar o salto,  não acha?


Alan leva a mão à nuca, sentindo o conector da interface com seus implantes neurais. 


– Mas lógico, não quero te pressionar. A decisão final é só tua!


Ele pluga a fibra ótica no seu conector, e dá um comando na tela sensível. As seguintes palavras aparecem, piscando:


INICIANDO UPLOAD MENTAL...


03/01/2013

22/12/2012


    O aviso correu o mundo rápido naquele sábado, manhã de 22 de dezembro de 2012. Manhã? Não, talvez seja melhor dizer dia. DIA?? Dia em 50% do planeta. Nos outros 50% era noite. Bom, era manhã no Japão, para ser bem específico. Outros doze fusos ainda esperavam pelas suas meias-noites, a transição do dia 21 para o dia 22.

    Muitos acordaram com ressaca. bastante gente havia bebido todas tentando aproveitar os últimos momentos no planeta. Quando seria? Outra pergunta complicadíssima... Diziam que no dia 21. Mas dia 21 de qual fuso horário? Seria um apocalipse seletivo, vitimando cada um dos meridianos por hora há medida em que a Terra seguia em seu movimento de rotação? E para as nações que não seguiam o calendário gregoriano? Como elas calculariam o momento deste fim? Tantas perguntas, e tão pouco tempo para respondê-las...

    Ignorando tudo isto, o aviso era claro: a NASA, em conjunto com outros respeitáveis Institutos Astronômicos do mundo, previam uma rajada solar rápida, mas fatal, para as 8 horas, 12 minutos e 34 segundos do dia 22 de dezembro de 2012 no horário de Greenwich! Para que não houvesse dúvida alguma. Um horário da "bruxa verde", comum, igual, reconhecido por qualquer pessoa no mundo!

    "Será breve, mas fatal para quem estiver desprotegido!", alertava o aviso. "Se protejam! Tetos de concreto são seguros. Amianto, palha, papelão... estes não conseguirão barrar o suficiente estes raios gama! Não se exponham, não tentem observar o fenômeno! ISTO NÃO É UM TROTE!"

    O mundo leu aquilo em suas telas de computador, celular, tablet, alguns nos primeiros jornais das bancas mesmo. mas com desdém. Outro fim do mundo? Esperaram um em 1900... que não aconteceu! A passagem do Halley em 1910 inundaria o planeta com o venenoso gás cianogênio... Nada aconteceu! Houve novo tumulto em 1986 com a volta do cometa, que também não acabou com o mundo. O bug do ano 2000 prometia um caos generalizado nos sistemas de informática que, de novo, não ocorreu. Em 2001 (que, como toda pessoa mais esclarecida sabe, é o verdadeiro primeiro ano do século XXI) carregava um peso embasado por palavras em poemas de Nostradamus: "de 2000 não passaras!!". E passou de novo...

    Eis o mundo em 20 de dezembro de 2012. De novo! O fim da contagem do tempo num antigo calendário maia, que ninguém mais usava, era motivo de um novo instante demarcando nosso fim. Por que teve tanta repercussão? Bom, os maias foram uma civilização sábia, que alguns especulavam que se comunicavam diretamente com civilizações extraterrenas. Conheciam as distâncias dos planetas inobserváveis a olho nu com precisão: Urano, Netuno e Plutão! Plutão não é mais planeta? Ah, me desculpem... Os maias não sabiam disso ainda na época, mas de qualquer forma SABIAM a que distância o planetoide estava do sol. Tudo isso numa época em que as civilizações europeias mal haviam ainda inventado o ZERO! Um povo sábio assim devia saber do que estava falando, né!

    Sim, sabiam! E não tinham previsto nenhum fim do mundo! Dia 21/12/2012 era o fim do calendário deles, só isso! Algo equivalente ao nosso 31 de dezembro. Significava apenas que o dia seguinte seria primeiro de janeiro do ano atual MAIS UM. Mas interessava a muita gente espalhar este boato tolo, e uma "previsão" apoiada por "cálculos" de uma nação antiga tão sábia parecia o argumento perfeito!

    O fim do mundo não aconteceu. Muitos se agarraram à última "esperança" de que isto ainda aconteceria entre o último segundo das 23:59 de 21/12/2012 e a meia-noite de 22/12/2012. Esperança? Que palavra inadequada! Quem "anseia" pelo fim, pela destruição mundial? De qualquer forma, este anseio final se repetiu pelos 24 fusos do planeta. Cada fatia de gente esperando que o seu fuso fosse o previsto pelos maias, e que o fim aconteceria em SUA meia-noite do dia 22. Até se tornar dia 22 de dezembro no mundo inteiro, e o apocalipse não havia acontecido. Alívio? Sim, muita gente agradeceu aos céus pela nova chance. Alguns nem se surpreenderam: "não disse que era tudo besteira?" Alguns poucos, extremos, se decepcionaram. Ficaram indignados! "E agora? Me desfiz de tudo! Estou aqui neste abrigo idiota, vestindo esta capa de chumbo ridícula, pela qual paguei uma pequena fortuna! Acumulei dezenas de anos em mantimentos no meu bunker particular... para NADA??"

    Cientistas do mundo inteiro, usando o site da NASA pela credibilidade da Instituição, espalhava a notícia enfaticamente: "Simulamos o evento milhares de vezes nos nossos supercomputadores! Não existe chance de falha: a atividade solar acontecerá no dia, hora e minuto mencionados! NÃO SAIAM DE CASA! PROCUREM ABRIGO! Especialmente a parte do mundo exposta aos raios solares neste momento. NÃO É TROTE! VAI ACONTECER!", piscavam gigantescas letras vermelhas na página principal do site da NASA. E seguiam links para o mesmo aviso em todos os principais idiomas do mundo! Todos mesmo! Esperanto, latim, grego arcaico... até uma versão da página em Tupi-Guarani lá estava presente, para quem duvidasse de sua urgência e veracidade!

    O mundo estava desgastado com a última mentira. Circulava um comentário pela rede: "hehe, os hacker invadiram a NASA de novo! Olha só o que colocaram lá!", e seguia um link para o aviso. O efeito do alerta foi contrário ao esperado... Ninguém acreditou nele...

    Lembram daquela velha história do pastor e suas ovelhas? Que ele gritava "é o lobo! é o lobo!", e caía na gargalhada quando via todos se aproximando para ajudá-lo? Então... a história de certa forma se repetia. No dia, hora e segundo especificados, todos saíram de suas casas para observar o "fenômeno", rir dele. Pelo menos metade do mundo onde ainda era dia, onde os raios solares incidiam diretamente em vários ângulos, de acordo com o meridiano de seu observador. Irrelevante, a rajada fatal na maioria deles! Digamos... 99.6% da superfície diurna do planeta. Cerca de metade da humanidade? Errado de novo... Metade em SUPERFÍCIE planetária. Mas em pessoas? Sendo dia numa parte do mundo onde estavam presentes as populosas nações da Índia e da China? Não, era bem mais que a metade da população mundial que saía de suas casas esperando rir do novo "trote de fim do mundo".

    Porém... Ah, como dizer isto sem sentir dor pelas vidas perdidas? Coragem: ERA VERDADE! Um pulso repentino, rápido, de potentes raios gama vindos do sol dizimou uma grande parte das vidas expostas aos seus raios naquele exato momento! Durou frações de segundos: a simulação computacional era precisa! Bom, nem tanto: uma proteção básica sobre a cabeça, mesmo de amianto, palha ou madeira, seria suficiente para proteger seus ocupantes de maiores danos. Mas a exposição direta era fatal! E, infelizmente, uma enorme parte da população humana foi exposta a ela. Uma parte revoltada, indignada por uma nova "tentativa" de colocá-los no ridículo, expô-los a um trote de mal gosto. Eles queriam ver, não procuraram se proteger em sombra alguma. E seria tão fácil!

    O mundo do outro lado do planeta sobreviveu. Se um simples telhado de madeira era suficiente, que dizer do planeta inteiro, protegendo-os contra a estrela central? Dificuldades? Bem, a energia repentina causou sim uma leve descompressão entre as partes ocidentais e orientais dos hemisférios atmosféricos. Tufões, chuvas impossíveis de se prever... mas nada fatal! Por que aquela parte da humanidade (mais de 65%, eles agora contabilizavam) não haviam simplesmente se protegido em suas casas? Ou num toldo? Um ponto de ônibus? Uma oca? Uma simples capa de couro? MEU DEUS, qualquer lugar com sombra?? Mas não, estavam indignados! Queriam ver com os próprios olhos o despencar daquele novo boato. Ah, que tristeza... Desta vez não era boato...

    O sol, depois disso, continuaria estável por mais alguns milhões de anos no futuro. Os supercomputadores restantes na parte do mundo onde ainda era noite no instante do apocalipse garantiam isso! Ninguém mais duvidava deles. Ninguém ousava fazê-lo!

   Hora de esquecer, tocar pra frente. Temos metade do mundo quase deserto para ocupar. Enterrar os corpos, apagar incêndios! E as usinas nucleares na Rússia, Japão, Alemanha, etc...?  Alguém precisa correr até lá para desligá-las! Quem pode ter certeza se seus técnicos ainda estão vivos, ou se morreram naquele desafio irracional ao aviso da Administração Nacional do Espaço e da Aeronáutica?

    Lição aprendida! Não era tão difícil assim separar besteiras de avisos sérios, científicos! Não haviam técnicos nucleares entre os sobreviventes? Lógico que haviam! E, se precisassem de mais, de ajudantes, conhecer os processos das reações nucleares não era nenhuma coisa do outro mundo! Qualquer um poderia aprendê-las, e saberia desligar um reator quando o visse. Ninguém estava preparado para um novo anúncio de fim do mundo, resultado de simples desleixo...

    "É o lobo! É o Lobo!" Desta vez, era mesmo o lobo! Mas cansados de fazerem papel de tolos, ninguém acreditou...


02/01/2013

A Civilização Titânica


    Começou a se despedir de seus fiéis amigos. Haviam muitos, ele era muito benquisto na colônia! Não sentia tristeza. Todos sabiam que uma hora ou outra isto precisava acontecer. A semente protegida e alimentada durante toda a sua vida, sua continuação... precisava germinar! Não fazia sentido algum botar aquilo tudo a perder. Era hora de partir! Mas, seguindo o ritual que existia desde sempre (nem mesmo os mais antigos se lembravam de alguma vez ele não ter existido), ele se despedia.

    Como ele sabia que era a hora certa? Pergunta difícil... Ele simplesmente sabia! Para muitos amigos antigos, que já se foram, ele fez a mesma pergunta: "Como você sabe que é agora?". E a resposta era sempre igual: "Eu sei. Não posso explicar, mas quando for a TUA hora, você também vai saber!" E partiam para não mais retornar. Agora ele fazia o mesmo. Como ele sabia que era a hora? Ah, charada do destino! Ele simplesmente sabia! E, sem saber explicar, repetia a mesma ladainha aos amigos mais jovens dos quais se despedia: "Eu sei. Não posso explicar, mas quando for a TUA hora, você também vai saber!"

    A morte era rara entre eles. Nem mesmo a temiam. Na verdade, ninguém tinha mesmo uma ideia clara do que ela era, por falta de experiência. Acidentes? Aconteciam, sem dúvida! Uns quatro ou cinco em gerações incontáveis. Devido à raridade, os relatos de indivíduos encontrados inertes, congelados, despedaçados, transpassados, o que fosse, eram repetidos e repassados de geração em geração! E quem conta um conto, aumenta um ponto. O fato originalmente verídico de alguém encontrado sem vida ganhava tais proporções em poucas gerações que se tornavam difíceis de acreditar. O que fazia também difícil de acreditar que aconteciam, que alguns indivíduos de fato morriam. Nem possuíam uma palavra adequada em suas comunicações que descrevia tal conceito.

    Ninguém mais nascia ou morria, mas "se iam" e "surgiam". Sempre desciam novas crianças ao longo do curso dos rios, e se apresentavam totalmente inocentes naquele mar, acolhidos por alguma das várias colônias. E também sempre haviam sujeitos partindo, como agora ele fazia.

    As pessoas que partiam não mais voltavam. Ninguém sabia explicar isso. Ninguém nem tentava explicar. Era parte da cultura: todos reconheciam suas próprias horas, se despediam... e se afastavam! Para que direção? Ele próprio não sabia por que, mas seguia uma bem definida. Se concentrou tentando descobrir o que o dirigia. Ah lógico! Era a correnteza! Os apêndices em torno de seu aparato bucal circular lhe mostrava claramente qual a direção CONTRA a correnteza, que era para onde ele deveria se dirigir. Sair da calmaria daquele mar circular e encontrar a foz de um dos vários rios que nele desembocavam...

    Cruzou no caminho com inúmeras crianças, incrivelmente pequenas comparadas ao seu organismo maduro. Tentava saudar cada uma delas, "Bem-vindo, pequenino!", mesmo sabendo que nenhuma ainda havia desenvolvido alguma forma de linguagem. Elas desciam os rios por ser sua única opção: pequenas e fracas demais, tudo o que elas podiam fazer era se soltarem e seguirem a direção natural das correntezas, que convergiam para o centro daquele mar onde várias colônias se formavam em torno das incontáveis fontes criotermais ao fundo.

    Ele não! De musculatura invejável, propagava movimentos peristálticos pelas três caudas ejetando líquido exterior, o que o impulsionava para a frente, contra a correnteza que aumentava cada vez mais. Seguia um princípio simples de ação e reação que todos conheciam instintivamente. Exaustivo? Com certeza! Mas ele esta bem alimentado dos líquens extremófilos que comera antes da jornada! Sabia, inconscientemente, que precisaria desta energia extra.

    O ovo crescera dentro do gânglio principal de seu sistema nervoso, distribuído ao longo de seu corpo esguio. Pressionava este órgão central, que muitos sábios acreditavam ser o centro do pensamento racional de sua espécie. E eis aí o relógio! Era esta pressão que lhe avisara enfim que estava na hora, que o fizera iniciar aquela jornada. Última? Não se lembrava de ninguém ter voltado dela depois do ritual de despedida, então, como ser inteligente que era, acabou concluindo: sim, deveria ser a última mesmo! Medo? Ele tinha medo dos dodecápodes das profundezas! Temia as macrocélulas fagocitantes, tão transparentes que só se costumava vê-las quando era tarde demais! Mesmo assim, medos irracionais. Nenhum dodecápode de fato atacara algum conhecido seu durante sua vida. Era mais a geometria de 12 raios que os repugnava, fobia sabiamente implantada em seus inconscientes pela seleção natural para que fugissem quando ainda havia muito tempo para isso. Macrocélulas fagocitantes? Transparentes? Como alguém podia afirmar ter visto algo transparente? Isto estava mais no reino da imaginação mesmo, uma espécie de "bicho papão" da espécie, história para assustar as crianças...

    Reconheceu logo ter chegado à foz de um dos inúmeros rios pela mudança de viscosidade do ambiente ao redor. Alcanos, alcenos, butanos, propanos, pentanos, hexanos, heptanos... compostos complexos que se acumulavam a éons incontáveis naquele mar se tornavam mais raros, diluídos, à medida em que se aproximava do canal de fluido corrente. Estranho? Sim, bastante! Mas, ao mesmo tempo, a mudança de viscosidade que sentia ao entrar por aquele rio o fazia se sentir mais livre! Maior liberdade de movimentos, menor resistência hidrodinâmica! Poderia chegar mais rápido até... para onde mesmo ele estava se dirigindo? Sem poder responder, uma certeza interior o tranquilizava: "Vou saber quando chegar a hora!"

   A gigantesca figura vermiforme avançava pelo rio de metano e etano líquidos. Gigantesca? Ah, palavras deste tipo precisam ser usadas com cuidado, pois são dependentes demais do referencial. Do ponto de vista da espécie, eles sempre tiveram o tamanho que deveriam ter. Não conheciam outro. Perante suas crianças? Talvez sim. Mas mesmo assim, era incorreto. Gigantesco aqui não tinha o sentido de exceção, mas de regra! Os adultos SEMPRE eram gigantescos comparados às crianças! Sempre foi assim! Motivo algum para estranhamento...

   Consciente da magnetosfera do enorme corpo gasoso em torno do qual girava seu mundo laranja, ele percebeu a tortuosidade do rio caudaloso que seguia por perceber a variação aleatória da corrente do rio em relação aos campos magnéticos de seu "SOL". Sol entre aspas, lógico: muitos sábios da colônia argumentavam que ele só era centro do sistema local pela proximidade, mas que ele próprio, em torno do qual girava seu mundo, na verdade também deveria descrever uma órbita ao redor daquele corpo brilhante, apesar de pequeno, que regularmente aparecia no céu. Explicavam que seu tamanho aparente diminuto se devia à sua enorme distância, mas que ainda assim sua massa deveria ser tão descomunal a ponto de ser, de fato, o centro do sistema. Eles giravam, ainda que indiretamente, ao redor deste "verdadeiro sol". Tais ideias invadiam sua mente à medida em que ele sentia estar chegando ao seu destino final. Como ele sabia disto? Ah, de novo a velha pergunta...

    Como os astrônomos sabiam da existência deste sol distante? Bem, certamente eles nadavam até a superfície do mar de metano, e expunham seus receptores óticos sobre a superfície apesar do risco. Eles conheciam muito bem, sabia que isto poderia cegar completamente, mas... PRECISAVAM SABER! Alguns desenvolveram capas, outros cúpulas completas dentro das quais poderiam tentar se elevar sobre a superfície de seu mar com certa segurança, ver o que existia "lá fora". Mas não conseguiram nada muito mais espetacular do que este pequeno mas brilhante ponto e um disco pálido que às vezes surgia no céu, rodeado de um anel intrigante. Chegaram à conclusão que tal anel na verdade deveria ser formado de aglomerados das pequenas partículas de areia, a mesma areia de água e dióxido de carbono que circundava seu mar e formavam as margens de seus rios. Mas que vistas de longe pareciam compactas, pareciam formar um disco sólido. Uma ilusão de ótica. Difícil concluir algo sendo capaz de enxergar a olho nu apenas uma parte limitada do espectro luminoso, que ainda que abrangesse o infravermelho, decaía rápido nas frequências entre o vermelho e o amarelo. Eram quase cegos para o "laranja" cor predominante de seu "planeta-lua", e que era pano de fundo de seu céu, que só podiam observar por poucos segundos a olhos nus. Todos os sete olhos abaixo dos apêndices encefálicos, rodeando a boca central. Nenhum resistiria muito tempo à luz natural do sol distante. Evoluíram para captar aquele infravermelho fraco que com dificuldade se propagava entre as moléculas de metano líquido de seu mar, a 180 graus negativos.

    "É aqui! Eu SEI!", e parando de nadar contra a correnteza, passou a se dirigir de forma suicida em direção à margem. Ele sabia do risco! Sabia que não deveria tentar pular para fora do metano liquefeito! Mas aquilo era uma ordem, vinda ele não sabia de onde! "Calma!", tentou ser racional. "Será que é isto mesmo que devo fazer?" Se ergueu devagar sobre a superfície do rio de metano. Olhou em volta. Era dia, ou seja, brilhante demais! Nunca fôra exporto a tanta radiação solar no fundo de seu mar, vivendo em sua colônia de manifestações móveis! As margens do rio eram duas faixas que se estendiam numa direção e na contrária. Paralelas à correnteza. Deveria existir uma lógica nisto. Alguém a estudaria algum dia?

    Contra a corrente, ele estava mais próximo da margem direita. Exausto da jornada, se decidiu por esta, o caminho mais fácil. Ah, quando aquilo acabaria? E como? A estranha neblina de materiais orgânicos complexos se dissipava à medida em que ele se aproximava da margem. Tentava compensar o arrasto, sabia que a correnteza o faria atingir um ponto distante do pretendido se tentasse seguir reto. Mas ele sabia instintivamente compensar isto, avançando para a margem num ângulo não perpendicular, que compensava o arrasto. Como ele sabia calcular tais coisas sem ter consciência delas? Será que o DNA era capaz de codificar correções derivativas tão complexas a este ponto em seus genes? Aparentemente sim!

    Ele avançou resoluto levando seu ovo  que crescia dentro do cérebro principal. Ovo único! Par de alelos completo, definidos em sua concepção. Onde? Ele não sabia, mas foi em um rio parecido com aquele, com dois óvulos, cada um com um DNA parcial, procurando outro com o qual se recombinar ao acaso. Ah, o acaso! Fator importante! Todo este mecanismo complexo existindo para que ele acontecesse!

   Altas e sólidas estruturas cresciam ao longo da margem. Isto ele percebeu ao saltar rápido da superfície do rio de metano. Basicamente imóveis, sésseis, enraizadas no chão da margem daquele rio. Vivas, apesar da imobilidade? Isto parecia claro! Ele não sabia como explicar esta sensação de vida, mas a sentia! As sentia como sua origem! Seus pais, ancestrais de mesma espécie que haviam crescido com morfologia diferente, mais adequada ao seu ambiente seco. Relutava ainda em pular para a margem. O medo do desconhecido o dominava!

    "Não tenha medo! Pule!" Ele não sabia de onde vinha este encorajamento. Na verdade era hormonal, substâncias que os seres sésseis que cresciam nas margens emanavam pelas raízes em contato com o rio, mas que para ele era tão irresistível quanto uma ordem verbal! "Esta é a conclusão, o objetivo de sua vida! Aquilo pelo qual você continuou existindo até agora!"

   Pulou do rio de metano para a margem formada por espessa areia de gelo de água e dióxido de carbono, um pouco molhada por compostos orgânicos complexos de um temporal recente. Estava quente! Viscoso e quente! Ele não estava acostumado com aquela temperatura infernal de -168 graus Celsius, bem diferente dos -180 graus aos quais ele estava acostumado a vida INTEIRA. Se arrependeu! Queria voltar para o rio de metano, mas já não podia!

   "Vai ser rápido, criança!", o encorajava uma voz vinda ele não sabia de onde. "Será menos doloroso se você não resistir!"

    A luz do distante sol central queimava sua pele, exposta à atmosfera de 95% de nitrogênio e 5% de metano. "Teria sido melhor eu ter chegado aqui durante à noite?", ele pensou, pensamento logo respondido: "Pequeno, isto só lhe prolongaria a agonia! Você chegou na melhor hora!"

    A ideia lhe era estranha. Estrebuchando, secando naquele infernal calor de -168 graus sobre a estranha criatura séssil gigantesca, ele perguntou: "Estou morrendo? Então é assim a morte?"

    "Você carrega uma joia dentro de si, criança! É esta jóia, dentro de seu cérebro principal, que te levou até aqui!"

    Ele morria. O calor fazia evaporar o metano de seu corpo.

    "Dorme, dorme, meu bebezinho..." Terminações nervosas ao longo do tronco rígido daquela criatura séssil plantada às margens do rio tentavam amenizar a dor da morte de um representante de sua espécie, no final de sua manifestação móvel. Ressecado, os impulsos chegavam cada vez mais diretos aos seus gânglios cerebrais. "Se imagine pequeno... inocente... Livre!!!" Era difícil de se explicar, mas enquanto morria, ele transmitia à criatura séssil escolhida toda sua informação de vida! Lembranças, medos, conquistas, sonhos... Tudo! Coisa alguma seria perdida com sua morte iminente. Ao contrário! Ele era matéria! Matéria orgânica! Alimento! Adubo para a semente que criara e preservara durante toda a vida! Que cresceria com seus genes recombinados! Uma nova variação genética que lá estava por ser vitoriosa, e por isto mesmo precisava se propagar! A Evolução das Espécies se repetindo, seguindo o programa que sempre repetia em todas as partes do universo!!

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    A informação se propagou por aquela rede de seres sésseis. Telepatia? Bom, mais ou menos. Cada uma daquelas criaturas imóveis era individual. A informação mental se propagava entre elas sim, mas não por meios imateriais. Não era, necessariamente, a "telepatia" como estamos acostumados a descrevê-la. Os seres criavam longas raízes no solo, e estas raízes acabavam se interceptando. E nestas raízes existiam terminações nervosas, que se comunicavam umas com as outras. Fora uma certa resistência existente entre as sinapses subterrâneas conectando os indivíduos, era inevitável que ao longo das eras de evolução eles acabariam desenvolvendo um "super-cérebro coletivo" no qual seria quase impossível separar personalidades individuais. Não era o caso atual, e se poderia seguramente comparar a atual rede neural, muito eficiente, a uma espécie de "grande rede telepática".

    "Era um representante móvel de minha primeira semeadura?"

    "Com certeza, amigo! Seu carimbo mental nele era inquestionável! Sua ousadia, sua curiosidade... Era sim de sua primeira semeadura, não tenho dúvida alguma!"

    A informação se propagava rápido ao longo da margem direita do rio de metano. Direita ou esquerda? Ah, tudo é relativo! Contra ou a favor da correnteza? Nascimento ou morte?

    "Depois de quatro semeaduras! Genes parciais em óvulos, com metade dos alelos, espalhados aos milhares pelo rio! Ao acaso. Esperando uma improvável recombinação, dentro do meio fluido e turbulento, com outro óvulo compatível, improvável, portador de outras variações genéticas em sua hélice do par de alelos... E descobrir, depois de todo este tempo, que um deles deu certo, e voltou para semear de novo a margem com um ovo-semente completo! Um novo ser, inteiro, progenitor, que vai gerar novos óvulos com combinações de genes ao acaso depois de brotar e amadurecer! Ah, que sensação incrível!"

    "Você já sabe o que deve fazer, não é?"

   "Depois de quatro semeadura? Ah, meu amigo! Minha missão aqui se acabou... Faço isto com satisfação!"

    O ser séssil, bastante velho, começou a se auto-consumir na base que o ligava ao solo, a desprender seu forte tronco orgânico das raízes que o seguravam ao longo da margem do rio. Medo de morrer?? Ah, que sentimento humano mais absurdo, mais difícil de ser compreendido... Medo por quê? Vocês não sabem que são finitos? Que não são eternos? Que podem tentar atrasar, ganhar mais algumas décadas, séculos mesmo milênios de vida... mas que uma hora precisam acabar? Ah, como seriam mais felizes se não se apegassem tanto a esta obsessão por imortalidade...

    A criatura se desprendeu totalmente de suas raízes, com as bases auto-consumidas, e começou a cair no rio de metano de Titã. Como ela sabia que era sua hora? Difícil explicar... Ela simplesmente sabia! Crescendo com o alimento trazido pelos vários seres móveis pulando em sua margem, adubando o solo com compostos orgânicos elaborados no interior do mar de metano, era sua hora de contribuir: oferecer seu corpo ao rio, que decomposto devolveria ao mar, onde habitavam as colônias de gerações móveis de sua espécie, os compostos orgânicos complexos dos quais dependiam. Especialmente agora, para as crianças novas que surgiam e eram levadas pela correnteza até o centro daquele mar, onde alguma colônia as adotaria e lhes ensinariam a cultura. Cultura essa que elas devolveriam aos seres sésseis no momento em que voltassem para plantar sua semente completa, fecundada...


*** FIM ***

Onde Habita Nossa Alma


    Era um típico momento de descontração entre profissionais especialistas da Medicina. Escolhiam com cuidado seus tacos de golfe, avaliavam a direção dos ventos... e jogavam conversa fora. Oncologista reconhececido, ganhador do último Nobel, ele quase recusou o convite, pois não acordou se sentindo bem. Acordara com uma enxaqueca inexplicável, visão turva. Mas a possibilidade de trocar idéias com o famoso Neurologista lhe deu ânimo renovado. Normalmente aquela afirmação pareceria absurda vindo da boca de qualquer outra pessoa, mas vindo da boca de um especialista em Neurologia o absurdo ganhava proporções incomensuráveis!

    - Acho que entendi mal sua idéia. Se pudesse explicar de novo... - e dá uma tacada certeira.

    O Neurologista esperava por esta reação.

    - Dificil de acreditar, particularmente por causa da minha especialidade, não é? Mas é exatamente por ter estudado tando sobre isto que reafirmo o que digo!

    - Não é possível, meu caro! Isso faz a medicina regredir milênios.

    - Regredir? Não, de forma alguma! - se prepara para a sua tacada. - Se eu estiver certo (e tenho quase certeza de que estou), regredimos mesmo foi quando desprezamos a teoria antiga, que já estava correta!

    O Cardiologista acompanhava a discussão sem participar do jogo.

    - Existe uma pequena rede neural no coração controlando o ritmo dos batimentos. - disse, tentando contribuir com sua especialidade. - De certa forma, nossos corações têm um micro-cérebro próprio bem primitivo.

    O Neurologista lustra seu taco de golfe, enquanto o amigo Oncologista se prepara para a próxima tacada.

    - É minha especialidade que os deixa tão perplexos, não é? Incompatível com minha proposta? Pois, ao contrário, é o fato de eu conhecer muito bem o que conheço que me permite afirmar isto que estou afirmando!

    Ele dá sua tacada, também certeita.

    - Sua vez, amigo! Empatamos!

    Ao dar a próxima tacada, percebe que a visão se turva rápido! Por isto jogou a bola tão longe do alvo! Mas, competitivo, seria incapaz de se desculpar por um mal-estar momentâneo.

    - Você confirma sua teoria de que o cérebro não é sede de nossos pensamentos, memórias e personalidade? - desafia, recuperado do mal-estar repentino.

    - Vou mais longe, mas... vamos lá! Continuemos com esta linha de raciocínio.

    - Nosso amigo afirma que a personalidade não está no cérebro. - questiona o Cardiologista.

    - Somos cientistas, meu caro! Personalidade é um conceito abstrato demais! Defina melhor! Cite características mais objetivas de nossas personalidades.

    - Nossas vozes, por exemplo.

    Um sorrizinho sarcástico apareceu na face do Neurologista. O Oncologista percebeu rápido também a falácia do amigo Cardiologista, mas deixou o colega Neurologista desfrutar de seu momento.

    - Bem se vê que Fonoaudiologia não é teu forte, meu amigo.

    Um silêncio constrangedor. O Cardiologista logo percebeu a besteira que dissera, mas achou que interferir, tentar consertar, seria pior. Deixou o Neurologista curtir seu momento de Glória Momentânea:

    - Óbvio que nossas vozes não estão no cérebro, e sim em nossas cordas vocais!

    - Mas... - o Cardiologista ainda tentava concertar o "inconsertável". - Não me referia somente à voz, mas ao sotaque, às particularidades de pronúncia...

    - Memória muscular, uma combinação de movimentos condicionados de músculos do diafragma, língua, faringe, lábios... De certa formas, algo bem mais evidente numa outra característica marcante de nossas personalidades: a caligrafia!

    Uma característica estereotipada dos médicos, famosos pela letra ruim. Injusto, pensou o Oncologista indignado, sempre orgulhoso de sua letra. E com razão, pois suas receitas eram sempre elogiadas pelos pacientes.

    - Então nossa caligrafia não está registrada em nossos cérebros, segundo sua teoria... - continuou o Oncologista, cutucando o colega.

    - Óbvio que não! Tal característica está registrada nas memórias dos músculos da mão! É o treinamento de seus movimentos que determina a caligrafia de alguém. O cérebro é totalmente dispensável neste caso também...

    Pensa um pouco antes de revelar. Poderia revelar tal idéia? Bem, estava entre amigos! Ninguém o entregaria por uma inocente hipótese! Ele bem sabia que não era só "hipótese", mas não tinha por que abrir tudo de uma vez.

    - Imaginei uma vez tal experiência: transplante de antebraço! O receptor não acabaria assumindo a caligrafia de seu doador, dado que a "memória caligráfica" estaria registrada em seus músculos? Bem... - ele ponderou bastante, pois sabia o resultado: já fizera a experiência! - Acredito que ela provaria parte de minha teoria.

    - A personalidade é muito mais complexa que voz e caligrafia. - acrescentou o Oncologista, sentindo de novo uma leve pontada na cabeça.

    - Meus caros cientistas -  continuou com sarcasmo. - Definam melhor esta palavra: "personalidade"! Nossa bem-amada ciência nó pode responder perguntas formuladas com exatidão. Para questões inexatas, favor recorrerem à Teologia... - e explode numa gargalhada até que bonita de se ouvir.

    - Pessoas calmas, outras violentas, hiperativas, ansiosas...

    - Explicado por variações glandulares! Excesso de testosterona explica muito bem o comportamento violento. A maioria das disfunções digestivas (problemas com produção de insulina, por exemplo) também afetam bem o comportamento. Nenhuma necessidade de interferência cerebral para estas variações de comportamento. Eu poderia explicar cada um deles como disfunção hormonal, mas isto seria bem maçante...

    - Ninguém sobrevive sem cérebro!

    - Explique melhor. - desafiou o Neurologista.

    Ele era um Neurologista brilhante! Não se arriscaria a afirmar tais besteiras se não tivesse alguma carta escondida na manga.

    - Morte Cerebral é considerada morte definitiva!

    - Nós DEPENDEMOS do cérebro, mas não precisamos dele.

    Os dois médicos, Oncologista e Cardiologista, olham abismados para o Neurologista.

    - Onde reside nossas memórias, raciocínio, percepção? Esta informação toda?

    - Você acredita que é tanta informação assim?

    Com o taco na mão, nem estava mais tão interessado assim no jogo. A discussão estava bem empolgante!

    - O Tiranossaurus Rex, com 15 metros de altura, tinha cérebro com o tamanho de uma noz...

    - Se extinguiram.

    - Correção: FORAM extintos! Por um acidente cósmico. Eles não tinham controle sobre isto. Nós próprios desapareceríamos ainda bem mais rápido do planeta se precisássemos enfrentar cataclisma semelhante!

    O Cardiologista olhou para o vazio, sem entender nada.

    - Um Neurologista que não acredita no cérebro...

    Ele sentiu a crítica. Bom, não dava para discutir com alguém especializado numa bomba muscular. Olhou fundo nos olhos do Oncologista.

    - Você é a pessoa aqui mais capaz de entender o que vou afirmar agora: o cérebro é um Tumor Nervoso!

    O Oncologista ouviu aquilo sem saber como reagir.

    - Não me olhe assim, você entendeu bem! Um parasita, desnecessário! A Notocorda, agora nosso feixe espinhal, nos explica a personalidade, memória e raciocínio.

    Ele começava a entender, mas não queria.

    - Você estava ansioso para conversar comigo? Nem imagina o quanto esperei para discutir contigo, meu caro ganhador do prêmio Nobel!

    A enxaqueca ficava mais forte. As imagens voltavam a se turvar.

    - Seu prêmio Nobel foi por provar o fato de células parasitas tentarem se perpetuar afetando o próprio código genético de seu hospedeiro, não é?

    - Sim! - ele concordou, com a dor nas têmporas já quase insuportável.

    - E o que afirmo é isto: o cérebro é uma doença! Um parasita! Um tumor desenvolvido na extremidade superior da Notocorda, que aprendeu a se propagar interferindo no DNA de seus hospedeiros!

    Sua visão se tornou totalmente turva! Começou a sentir cheiros e gostos estranhos. Ele não era ignorante! Mesmo não sendo sua especialidade, ele sabia muito bem reconhecer os sintomas!

    - Não precisamos do cérebro para viver! Mas ele nos armou uma arapuca bem elaborada no correr do processo evolutivo!

    O Cardiologista percebeu logo o colega Oncologista caindo e se estrebuxando convulsivo no chão. O Neurologista estava perdido em seu monólogo, e demorou mais para notar o que acontecia à sua volta.

    - Mas eu já sei curar esta dependência! Caros, provarei que o Tumor Cerebral pode ser eliminado! A Humanidade poderá enfim continuar evoluindo sem esta doença, poderá recuperar o tempo perdido...

    - Quer calar a boca? - explodiu o Cardiologista. - Não percebeu ainda que nosso amigo aqui está sofrendo um AVC??

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    Ele acordou confuso. Aos poucos a memória voltava. Bem aos poucos. Mas se concentrou no presente. Estava numa cama esterilizada, branca, de algum hospital. Ouviu vozes familiares:

    - Ele acordou.

    O raciocínio voltava. Lento, mas constante. Reconheceu o colega Neurologista entrando no quarto.

    - O que aconteceu?

    - Você teve um AVC! Acidente Vascular Cerebral.

    - Eu sei bem o que é AVC! Foi resolvido?

    - Com certeza! De forma definitiva!

    Ele pensou. Nunca havia percebido antes o problema!

    - Pode surgir sem aviso mesmo! - explicou o amigo à sua frente. - Não se culpe, não foi desleixo.

    - Preciso me cuidar...

    - É recomendável, mas para outros problemas! Você nunca mais terá um AVC.

    - Como assim?

    Teria percebido, de novo, um risinho cínico no rosto do amigo?

    - Ah, que dor de cabeça!!!

    Tentou levar a mão até a testa, mas o amigo o segurou rápido.

    - É melhor não fazer isto por enquanto! Não até terminarmos a prótese... - disse o Neurologista, que também era Neurocirurgião, segurando firmemente seu braço.

    Sentia claramente um vazio inexplicável em sua consciência. Tentou se erguer para encarar melhor o amigo, e sentiu a cabeça inexplicávelmente leve.

    - O que aconteceu comigo?

    - Você sofreu um AVC fatal, meu amigo!

    - Fatal? Como fatal? Se eu ainda estou aqui...

    - Resolvemos o problema definitivamente.

    Nada fazia sentido.

    - Resolveram?

    O amigo Neurologista resolveu se abrir.
   
    - Amigo, tomei a liberdade de decidir por você!

    Ele quase conseguiu entender! Mas se recusava a acreditar.

    - Era mais importante te manter vivo!

    - Você me usou de cobaia! - concluiu enfim...- Você testou aquela idéia maluca comigo!

    O olhar não tentava esconder nada.

    - Era a única forma de te preservar, amigo! Sua mente era preciosa demais para ser desprerdiçada por um acidente estúpido! Por uma disfunção, falha de funcionamento, num órgão que nem precisava existir...

    Ele tentou digerir a informação. Finalmente, exigiu:

    - Espelho! Me dê um espelho!

    - Não é boa idéia, amigo! É melhor esperar pela prótese...

    - Espelho, rápido!!! Exijo saber como estou agora!!!

    O Neurocirurgião enfim falou, lhe entregando um espelho:

    - Não se surpreenda! Logo isto se tornará comum...

    Ele olhou seu novo rosto no espelho. Sem mais testa, serrada pouco acima da altura das sombrancelhas. O amigo continuava:

    - Você vive, não é? Continua raciocinando.

    Ele deslocou o espelho. Viu a parte superior, inexistente, do crânio. Seu cérebro, precisamente removido (todas as veias e artérias cuidadosamente suturadas), aguardando uma proteção sintética.

    - Você ainda pensa, não é?

    - Sim... - de fato, ele ainda pensava.

    - E cadê o cérebro? Acha que ainda pensa com o cérebro?

    De novo um intervalo difícil de se enfrentar.

   - Você ainda acha que precisa do cérebro para existir? Você continua existindo e raciocinando, sem cérebro! Ninguém nunca precisou do cérebro!

    Não existia! Certamente  ele nunca mais na vida teria um Acidente Vascular Cerebral, pois ele não tinha mais cérebro!

    A mão perdeu firrmeza. O espelho caiu e se quebrou no chão.
   
    - Cadê meu cérebro, cara? Quem autorizou isto?

    - Você mesmo!

    - Eu????

    Olhou para o antebraço esquerdo decepado! Canhoto, sua mão mais ágil fôra removida!

    - Ah... entendi...

    Viu as suturas recentes no antebraço dirteito do amigo. Estranhíssimo! Ele exibia agora, para quem quisesse ver, duas mãos esquerdas!!! Uma natural, e a segunda claramente implantada.

    - Você mesmo assinou a permissão... - o Neurologista ergueu sua mão direita, invertida, com uma mão esquerda estranhamente implantada nela. E para qualquer pessoa ficaria claro que aquela mão não era dele...


*** FIM ***